sábado, 26 de julho de 2014

"Dedicatorias" - Quando se está cansado e apraz ser Outro...


Quando se está cansado e apraz ser outro
Só porque isso é impossível, há vagar
Para pensar que há um género que é neutro
No latim virgem do sonhar.



Sim, há cansaços sem saber de quê
Que tornam toda a vida e a sua sina
Uma coisa indecisa que não é
Masculina ou feminina.



Há estados de sem alma que se alastram
Pelos domínios quedos da razão
Com cheias de rios que desbastam
Com a sua fecundação.



Depois regressa ao leito o rio antigo
E a alma volve à quietação que teve.
E o que nos foi amigo e inimigo
Nem homem nem mulher esteve.



Foi um andrógino da noite muda
Que transmudou em nós o que pensou…
E a alma se ergueu do leito em que foi surda
E já não sabe o que sonhou.



Fernando Pessoa: 15 - 9 - 1934
←  Anterior Proxima  → Página inicial

0 comentários:

Enviar um comentário